Quando sentes as estacas imponentes, espetadas bem dentro de ti, ensombrando-te uma existência outrora pacífica, transformas-te, sem que te apercebas e permites que te arranquem todos os pedaços que mais tarde te verás incapaz de reaver!
Não saberes de que forma poderás voltar a ser apenas tu mata-te aos poucos, suga-te a alma, o ar e impede-te de raciocinar. O ciúme é uma agressão violenta, demasiado dolorosa para ser aceite como mais uma lição. O ciúme deixa-nos vulneráveis, frágeis e sem identidade. O ciúme é o oposto de tudo o que deveríamos sentir a cada dia, para que nos pudéssemos tornar alguém melhor.
Foi assim com a Ana e ver-se estirada no sofá que parecia espetar-lhe cada osso, recordando o telefonema que fora incapaz de evitar, fazia-a sentir que não haveria forma de continuar, que este estar não estando, lhe iria ser mortífero e que teria de parar de não fazer nada, encolhendo-se de cada vez que se lembrasse, porque lembrar fazia-lhe tão mal.
Os telefonemas eram desculpas, mas o risco que alguém apaixonado corre, para apenas ouvir a voz que lhe sossegará as entranhas, vai-se tornando estupidamente perigoso, sem limites de tempo, de velocidade ou sequer de loucura mais ou menos assumida. Telefonar para quem não poderá atender, recebendo outra voz, ensaiando desculpas às pressa, daquelas que soarão a tudo menos à realidade que se tenta esconder, é absurdo e tão doloroso para quem o faz, como para quem o recebe. Ficam, de ambos os lados, a mastigar uma relação a 3, culpando-se pelas indecisões, pelas mágoas e pelos amores que não parecem estar do lado certo, ou talvez até estejam, mas na dimensão errada.
Ana recordava-se bem do princípio de tudo aquilo. Recordava sobretudo a sua enorme instabilidade emocional, fruto de uma maternidade demasiado intensa. Esquecera-se de ser mulher e quando se olhara, nada do que reflectia quem conhecera antes. Até que... de repente chega uma lufada de ar fresco à vida do marido, uma funcionária nova, cheia de todos os atributos que lhe pareciam agora faltar.
Como se o amor precisasse de outros olhos que não os do coração. Já o dizia a raposa de Saint Exupery, ... "o essencial é invisível para os olhos..."
O essencial será também sabermos quando lutar, ou quando parar, deixando que a vida tome o seu curso, aquele que interrompemos, com ou sem qualquer consciência. O essencial é continuarmos a ser quem reconhecíamos, devolvendo-nos o que outros, algures, conseguiram tirar!
Tenho o coração livre, não estou presa nem a ideias pequenas, nem aos males do mundo. Tenho o coração tão livre quanto já o aprendi a ser eu mesma.
A parte de mim que quero manter presa, é a que sabe como se respeitar, respeitando todos quantos me cheguem, não importa porque via. A parte de mim que me esforço por conservar, é a que acredita que é possível melhorar, amando mais e melhor e não desperdiçando sentimentos, porque preciso de todos eles. A parte de mim que me importa, é a que se expressa, até quando quase que mata quem não sabe do que falo e porque o repito, uma e outra vez. A parte de mim que amo, são todas as que, juntas, e apenas juntas, fazem a pessoa que nunca duvida de si mesma, até quando e por alguns segundos, se atreve a duvidar.
Tenho o coração livre. Está grande, feliz e a bater no ritmo certo. Tenho o coração tão livre, que até eu mesma caberia nele e não é que caibo mesmo? Tenho o coração livre e passou a estar no momento em que entendi que os ódios, as tristezas ou as cobranças o poderiam prender, irremediavelmente.
Tenho o coração livre porque também o sou, hoje e durante o tempo que me mantiver a acreditar em mim!
Há um tempo, mesmo que não esteja definido por minutos ou horas, mas há um tempo paraconhecermos quem está do nosso lado, quem usou o que sabia e tinha para nos manter depois da escolha, mesmo sem planear. Temos que conhecer quem amamos, nós mais do que todos os outros, precisamos de saber quem temos, de que forma e porquê. Temos que conhecer quem nos toca. Quem tem o corpo que se envolve no nosso. A pessoa que se tornará a mais importante, desde que a consigamos ver assim. A quem precisamos de saber ler até quando não fala, mesmo quando não nos abraça, porque nos abraços vão todos os sentimentos e não há como os dissimular. Temos o dever de conhecer quem nos dá e quem revolve o seu mundo inteiro, para receber o nosso.
Nem sempre entendemos do que fala o outro, porque nos sente como nos fazer sentir e o que armazenou para que pudéssemos estar onde nos encontramos ambos. Nem sempre gastamos o tempo que deveríamos para saber o que teve que mudar, do que abdicou e o que está pronta para mudar, apenas para que possam mudar os dois, de estatuto, de ânimo e até de sonhos.
Temos que conhecer quem nos parece ser a pessoa certa, porque a ser a errada talvez não queiramos estar certos. Não por uma vez, não desta vez...
Há um tempo acredita. Não temos todo o tempo do mundo para mantermos a querer quem pareceu ter o que lhe serviria quando nos escolheu. Há um tempo para passarmos a ser apenas nós, para o outro. Há um tempo para nos decidirmos a aceitar ficar ou a partir.
Temos que conhecer quem nos chega, assim como nos conhecemos a nós mesmos, porque de outra forma nunca fará sentido nem seremos bem-sucedidos!
O amor e a falta dele, transforma-nos para melhor e para pior. Somos o reflexo de tudo o que construímos e do muito que nos faltar, para entendermos que apenas teremos o que formos capazes de doar.